quarta-feira, 25 de julho de 2012

Tesouros achados

Minhas noções de ritmo e mérito literário vieram dos poemas modernistas do livro que Tio Arthur me deu

Meus pais eram imigrantes, refugiados de guerra e com pouca formação escolar. Por isso, havia poucos livros de literatura em casa, embora meu pai sempre comprasse enciclopédias dos vendedores ambulantes, profissão que ele também praticou por um tempo, só que vendendo roupas. Quem sempre me presenteava com livros era o Tio Arthur, um trotskista que já vivia no Brasil há muito mis tempo e que jogava tênis, falava sobre assuntos difíceis, ia ao teatro e tinha hábitos mais finos. A cada aniversário eu ganhava livros grossos, com encadernação de couro que me fascinavam, muitas vezes, mais do que o conteúdo. Além de tudo, ele sabia escolher. E uma vez me deu o Tesouro da Poesia Infantil. Sei que a partir daí dormia ao som de mim mesma cantando Café com pão, café com pão, virge Maria, que foi isso maquinista, ou declamando João amava Teresa que amava Raimundo, ou ainda A Boneca, de Olavo Bilac. Este sempre me fazia chorar. Duas meninas brigavam por uma boneca de pano, cada uma a puxava para um lado e, ao final, a boneca se rasgava. Talvez tenha sido minha primeira experiência concreta com os efeitos nefastos da ganância, pois eu sentia na pele a boneca se rompendo e pensava como as duas meninas poderiam, afinal, tê-la compartilhado. Não me conformava com o desfecho injusto. A poesia foi se tornando minha companheira da insônia e da vigília, porque sempre me sentia como a boneca, rasgada em razão de alguma injustiça, ou como uma das meninas que perdem um bem por vaidade. Posso dizer que minhas noções de ritmo, propriedade semântica e mérito literário vieram dos poemas modernistas desse livro presenteado pelo Tio Arthur. Tanto que até hoje minhas preferências poéticas são desse período. Mas ainda tenho certa moral maniqueísta, que essa, para minha dita e desdita, passa por cima do moderno e vai parar lá no parnasianismo, na boneca partida e em Bilac. 

Fonte: Carta Fundamental n. 38, maio de 2012, p. 61, Texto de Noemi Jaffe

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