quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Os deveres do leitor


1 Prestar atenção à história, se é uma história que está sendo contada. Acompanhar uma história é diferente de olhar uma pintura. Há livros que são feitos como pinturas, outros como música, outros pequenos teatros da vida imaginada. Uma história é uma sequência de acontecimentos e tem suas regras. Ao pegar o livro para prosseguir na leitura, é sempre bom dar uma passada rápida no que foi lido antes.

2 Cuidar bem do livro. Não é preciso tratá-lo como se fosse uma relíquia, basta cuidar para que não se estrague. Um livro é um instrumento, só funciona se estiver em boas condições.

3 Dar uma chance ao livro, às vezes mais que uma. Não se manda um livro para o sebo só porque não foi lido na primeira tentativa. Às vezes, o livro tem um tempo certo para ser lido. Isso acontece frequentemente com os clássicos, que o leitor muitas vezes se sente obrigado a ler por causa da fama, mas tenta ler num momento pouco adequado. Se o livro é de fato importante, vale a pena guardá-lo sem ler até a hora certa.

4 Obrigar-se a recordar o que foi lido, ficar pensando, examinando, interpretando, quando estiver de bobeira longe do livro. Ler não acontece apenas quando estamos lendo as frases do livro, mas quando pensamos nele a distância, saboreando e testando os reflexos que deixou na memória.

5 Saber distinguir entre o livro e o autor (um mau sujeito pode escrever um bom livro, e vice-versa). Saber distinguir entre os personagens e o autor (nem tudo que os personagens dizem é opinião pessoal do autor). Saber distinguir entre a imagem pública que o autor divulga de si mesmo e sua pessoa real, que nem sempre dá para perceber.

6 Ter confiança no autor. O leitor entra no livro de olhos vendados e o autor é seu guia. Acreditar que o que não está explicado agora será explicado mais adiante, não ficar impaciente por não estar entendendo tudo, deixar-se entrar no jogo e acompanhar o que acontece. Se o autor não merece confiança, para que abrir o livro?

7 Ter sempre um livro à mão para ler naqueles cinco ou dez minutos de não fazer nada: na cabeceira da cama, na poltrona da sala, na pasta (ou na bolsa), em cima da escrivaninha. Aprender a ler no metrô, na fila do banco, no aeroporto. Quem diz que não tem tempo para ler não sabe o tempo que está perdendo.

Fonte: Revista Carta Fundamental, n. 44, dez./jan. 2013, Texto de Bráulio Tavares

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

De pai para filho


Meu pai me ensinou a gostar de livros. Não era um intelectual, um professor: era um simples faroleiro. Funcionário público civil da Marinha, cuidava de manter em funcionamento adequado os faróis, que orientavam os navegantes. Na verdade, havia algo similar à função docente em tal orientação. O faroleiro olha o mar, dia e noite, sem cessar, como vela uma bengala os passos de quem não vê. Mas nada espera, solitário, solidário com tantas naves e vias. Não tem planos de marinheiro; é apenas o faroleiro. Hoje, com a automatização, tal profissão está praticamente extinta. 
Como dispunha de tempo entre os períodos de plantão, sobretudo ao longo do dia, meu pai costumava preenchê-lo com a leitura. A literatura espírita era de seu especial interesse, sobretudo os textos básicos, como A Gênese, de Allan Kardec. Lia sem pressa, degustando cada linha, cada página. Sua afeição pelos livros era contagiante; seu respeito por eles me marcou profundamente. Entre os sete e os dez anos, muitas vezes peguei tais livros e tentei entender o que ele sentia ao lê-los. Achei A Gênese realmente fascinante. É claro que não entendia muita coisa, mas o interesse que tal narrativa despertava era enorme. Contava-se a história da criação do mundo, mas não apenas de modo mágico, como no catecismo católico: parecia mais um livro de ciências. Muito mais tarde, li efetivamente tal livro e minha admiração por ele – e pelo meu pai somente cresceu. A despeito de a ciência nele apresentada ser do século XIX, e estar, hoje, em grande parte, superada, a integridade com que as questões eram abordadas é exemplar em qualquer cenário científico. Afinal, como dizia Bacon, “a verdade nasce do erro mais facilmente do que da confusão”. 
Não foi A Gênese, no entanto, que me atraiu definitivamente para o mundo dos livros e da leitura, mas sim a atitude de meu pai para como os livros, e particularmente o presente que me deu quando ingressei no antigo curso ginasial, em 1960. Comprou à prestação o Novo Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro, editado em Portugal por Lello & Irmão, e passou, orgulhosamente, às minhas mãos. Trata-se de uma obra em três volumes, notável pelo seu caráter efetivamente enciclopédico. A primeira edição é de 1927 – a que mantenho comigo até hoje é de 1960. 
Os dois volumes de A a Z têm mais de 100.000 verbetes, mais de 6000 gravuras, centenas de quadros e mapas, coloridos e em preto e branco, dezenas de reproduções e desenhos à pena. O texto é convidativo e já se preocupa, nessa época, com a integração entre os países de língua portuguesa, fazendo referência a um Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro, então vigente. Apresenta ainda, no final do segundo volume, uma coletânea de frases latinas e em outras línguas, com significado e ilustração de uso. 
O terceiro volume era meu predileto: compunha-se apenas de História e Geografia, apresentadas em ordem alfabética de nomes, lugares, fatos importantes. Ao longo de minha vida escolar, mesmo dispondo de bancos de dados mais generosos, nunca deixei de consultar meu primeiro oráculo, a obra dos Lellos. Quando vim de Recife para São Paulo, em 1964, para fazer o chamado Curso Científico, trouxe em minha mala os três volumes, que simbolizavam o conhecimento que meu pai tanto valorizava, mesmo que as oportunidades de estudo formal não lhes tenham sido oferecidas.
Um efeito colateral importante do presente de meu pai foi meu especial interesse por dicionários de todos os tipos. Além dos dicionários em sentido estrito, os técnicos ou de disciplinas específicas, como de filosofia, antropologia, sociologia, linguística  matemática etc. Também os analógicos, os de sinônimos e antônimos, os de rimas, de regência, de línguas estrangeiras, de tupi-guarani, e particularmente os que possibilitam triangulações curiosas, como inglês-francês, espanhol-alemão, italiano-japonês etc. 
Leciono na universidade desde 1972 e já escrevi diversos livros, frutos de meu trabalho acadêmico. Hoje, percebo, na temática da maior parte deles, uma preocupação permanente – nem sempre bem sucedida - com os fundamentos do que se discute, com a construção de uma narrativa abrangente e reveladora da gênese das ideias apresentadas. A partir de 1995, passei a escrever também livros para crianças a partir de 5 anos. O primeiro deles foi justamente um dicionário de bichos, que chamei de Bichionário. Nele os animais são apresentados em ordem alfabética, um para cada letra, por meio de um pequeno poema referente a uma característica marcante dos mesmos. Ao final da leitura, o efeito colateral mais interessante, a meu ver, é o fato de as crianças introjetarem a ordem alfabética e passarem a recorrer naturalmente a ela na organização do mundo circundante. E novos livros são criados por elas: Brinquedionário, Plantionário, Timeonário, Frutionário etc.
Certamente, meu interesse pela epistemologia e por dicionários não podem ser associados explicitamente às leituras de meu pai, ou ao presente que me ofereceu aos 11 anos. Mas não tenho dúvidas da influência tácita de tais fatos sobre minha formação. Hoje, 50 anos depois, rendo-lhe as devidas homenagens.

Fonte: Revista Carta Fundamental, n. 18, Texto de Nílson José Machado, Ilustração de Kelly Kennedy

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

A piscina de livros

Na onda de obras que inundou minha casa, descobri com o Mágico de Oz que crescer é uma aventura e tanto

Eu tinha 10 anos quando li O Mágico de Oz dentro da piscina. Tudo bem que era uma piscina de livros, mas ainda assim...
A história foi a seguinte: minha mãe, que era professora da UFMG, fez uma campanha de arrecadação de livros e gibis usados para distribuí-los em creches e asilos de belo Horizonte. Um belo dia, acordei e topei com um caminhão despejando toneladas de livros na entrada de casa. O hall virou uma piscina de livros e ali eu mergulhei, nadei e me diverti durante dias.
Comecei a ler O Mágico de Oz ali mesmo e não saí da piscina até terminar. Não era a versão integral, de L. Frank Baum, que só fui conhecer anos depois, mas uma adaptação em formato de bolso que guardo até hoje. Quem é da minha geração deve se lembrar com carinho das “Edições de Ouro”, que soltavam páginas com facilidade, mas mesclavam ótimas histórias brasileiras e adaptações muito bem feitas.
Na minha cabeça, Dorothy desenhou-se muito mais jovem do que fui encontrar no filme com Judy Garland. Como parecia frágil aquela menina morando em uma casa tão pequena: “Eram só quatro paredes, o assoalho e o teto, isto é, um único aposento, contendo um fogão velho, um guarda-louça, a mesa, três ou quatro cadeiras e as camas. Tio Henry e Tia Em dormiam na cama grande, a um canto, e Dorothy, numa pequenina, no lado oposto do aposento”. No rodapé, vinham explicações para palavras difíceis: “longínquo recanto = lugar afastado”, “terríveis ciclones = ventos fortes”.
E quando veio o vento forte eu me senti tão desamparado quanto Dorothy. Felizmente, o ciclone deposita a casa no chão com delicadeza – “para um ciclone, é claro” – num cenário deslumbrante. E ali ela vai descobrir que crescer é uma aventura e tanto, uma viagem que mistura emoções e desafios, dúvidas e perigos. A menina arrebanha o Espantalho sem cérebro, o Homem de Lata, o Leão covarde e enfrenta a bruxa, além do sinistro “Mágico de Oz – que de sinistro não tem nada; por trás de toda a panca, é um sujeito tão inseguro e gentil quanto os amigos da menina.
Quem diria que, tantos anos depois, eu encontraria O Mágico de Oz na piscina outra vez? Agora a piscina cabe na palma da mão e se chama iPhone, iPade. Mas continua cheinha de livros, à espera de mergulhos.

Fonte: Revista Carta Fundamental, Texto de Leo Cunha

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Quero ser Marciano!

A descoberta que nasceu de um inesperado encontro com Fernando Sabino

"Quando crescer, quero ser piloto de avião." Sempre que alguém perguntava, eu respondia assim. Tinha 11 anos e minha maior vontade era conhecer o mundo. Queria visitar todos os países e imaginava que só conseguiria se fosse piloto de avião. Naquela época, conhecia só as praias de Santos e a fazenda dos meus tios, em Olímpia, a 450 quilômetros de São Paulo. Eram os dois locais onde passávamos as férias.

Na escola, devorei o volume 2 da Coleção Para Gostar de Ler, com crônicas de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga e Carlos Drummond de Andrade. Eu me diverti com a história do barbeiro que achava que o cliente era turco e só falava sobre a Turquia com ele. Contei em casa essa história com tanto entusiasmo que meu pai apareceu com O Encontro Marcado. Demorei para começar a ler o livro.

A grossura dele me assustou inicialmente. Devia ter três vezes mais páginas que o livrinho de crônicas. Além do mais, a concorrência era brava. A fazenda tinha piscina, cavalos, campo de futebol. Até o dia em que apanhei o exemplar e o levei para a rede na varanda. Fui apresentado para Eduardo Marciano, personagem central do livro.

Quando a história começa, Eduardo está com a mesma idade que eu. Por isso, começamos a nos identificar no primeiro capítulo. Página a página, o sonho de pilotar aviões começou a ir para o espaço. Decidi que queria ser escritor como Eduardo Marciano. Eu queria escrever como Fernando Sabino.

Voltei para São Paulo com desejo de me tornar escritor. Comprei cadernos de brochura para escrever minhas próprias histórias e perdi a conta de quantos livros passei a ler por mês. O tempo passou e fiz a faculdade de Jornalismo. Mas um encontro estava marcado na mesma Olímpia dez anos depois de minha formatura. Visitando os meus tios, encontrei numa estante da sala uma coleção de almanaques antigos. Fiquei folheando aquilo o fim de semana inteiro e nasceu aí a ideia do meu primeiro livro, O Guia dos Curiosos. O jornalismo e a literatura formaram uma harmoniosa relação em minha vida. Tanto que, hoje, quando me perguntam o que eu seria se não fosse jornalista e escritor, respondo: “Uma pessoa muito infeliz…”

Fonte: Revista Carta Fundamental, Texto de Marcelo Duarte