segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Esse Eça!

Talvez por ter nascido sem pai, talvez por ter sido um menino solitário, talvez porque ainda não havia televisão nem video-game, ou talvez porque fosse mesmo tímido, logo que pude decifrar as “formiguinhas pretas”, meu lazer passou a ser a leitura. Nada de “estudo”, nada de “busca do saber”. Ler para sonhar, para sentir-me na pele dos protagonistas, para me divertir mesmo. Quanto dessas leituras habita ainda em mim!
O impacto da história do menino miserável e aleijado que deseja ver Jesus despertou-me a vontade de conhecer outras histórias daquele escritor. Na biblioteca da escola, descobri um livro com mais contos seus e adorei O Tesouro, A Aia, O Defunto. Na ocasião, o interesse por livros de suspense, mistérios e crimes já tinha sido despertado, e ouvi falar que aquele fantástico português escrevera um livro chamado O Crime do Padre Amaro. Ah, devia ser demais! Um crime cometido por um padre!
Minha mãe não tinha posses além de seu imenso amor. De qualquer modo, sonhar era barato e eu costumava escrever num caderno uma lista de “coisas que eu quero”. A lista começava com o item “Livros”, onde registrei, em primeiro lugar, O Crime do Padre Amaro. Certa vez um tio abriu meu caderno e lá descobriu a lista. E fez um escândalo!
Como podia eu adivinhar que o tema de O Crime do Padre Amaro não era assim tão suave como o milagre feito por Jesus para atender à esperança do pobre menino aleijado? Hoje, O Crime do Padre Amaro é indicado como leitura obrigatória para vestibulares e milhares de jovens mergulham na tão bem descrita paixão do Padre Amaro pela linda Amélia. Que história! Tão logo pude distanciar-me do controle familiar, devorei o livro. Com ele vieram outros. Ah, esse Eça!

Fonte: Revista Carta Fundamental, Texto de Pedro Bandeira

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Por que a criança precisa de um livro ilustrado?

Especialistas explicam por que a ilustração é tão importante na narrativa e dão dicas de como escolher

Pesquisa recente sobre ensino na França concluiu que os alunos de melhor desempenho não são aqueles que leram os clássicos. A informação causou alvoroço durante a palestra de Sophie van den Linden, crítica de literatura infantil de passagem por São Paulo em razão do lançamento de sua obra, Para ler o livro ilustrado (Cosac Naify), no ano passado. Alvoroço, porque ia de encontro a um dos dogmas mais bem fundamentados através dos tempos sobre leituras obrigatórias desde tenra idade. Foi quando Sophie apresentou a ideia que dá base ao seu trabalho: "O importante é permitir aos filhos o acesso aos mais variados estilos de leitura e o prazer de escolher o que desejam ler", disse a especialista francesa. E acalmou a plateia.

O livro de Sophie van den Linden, aliás, é uma Bíblia sobre o livro ilustrado - e causa, ele próprio, assombro ao destacar a riqueza e a singularidade da produção desse tipo de literatura ao redor do mundo. Desde o primeiro trabalho que associou texto e imagem para contar uma história (Rodolphe Töpffer, em litografia, 1835) ao editor (Hetzel) que se interessou de modo inédito em divulgar obras exclusivas para o leitor infantil (1860), muito já se inovou nesse universo literário. "Hoje, ler um livro ilustrado não significa ler texto e imagem, é isso e muito mais", salientou Sophie. "É apreciar o formato, o uso de um enquadramento, a relação entre a capa e as guardas e os seus conteúdos, a articulação da poesia do texto com a poesia do desenho...".

E por aí vai. A criança, que de boba não tem nada, dá atenção a tudo isso de modo espontâneo, ela que percebe o mundo ao redor a partir das imagens. "No dia a dia com as minhas filhas de 3 e 5 anos, eu tento ler uma história, mas não dá certo, elas querem de todo jeito acompanhar a narrativa com a ilustração que existe em cada página...", revela Júlia Schwartz, editora da linha infanto-juvenil da Companhia das Letras. À medida que o tempo passa, porém, os pequenos crescem e perdem essa comunicação direta com o mundo visual. "Em geral, somos estimulados a ler apenas o texto, a se concentrar nele... O livro ilustrado serve para desenvolver a nossa educação visual que é muito precária", opina Isabel Lopes Coelho, diretora editorial do núcleo infanto-juvenil da Cosac Naify. Mais: ao transformar a ideia, o conceito, em algo concreto, o livro ilustrado alimenta a fantasia, realçando o seu papel de leitura obrigatória desde a infância. Por uma simples razão: "A imaginação é um componente da inteligência e da criatividade", lembra Neide Barbosa Saisi, psicóloga e professora da Faculdade de Educação da PUC-SP. 

Uma das qualidades do livro ilustrado (ou livro imagem) está, portanto, em treinar o olhar do leitor de modo a que ele compreenda todas as sutilezas artísticas do trabalho que tem em mãos. De uns seis anos para cá, inclusive, a produção desse tipo de obra é tão complexa que o seu criador deixou de ser reconhecido apenas como ilustrador, mas sim autor de uma obra completa (às vezes com texto, às vezes só com imagens) pelas principais editoras do País - trata-se de um nicho de mercado que não para de crescer, a propósito. "É um tempo de grande experimentação, de aproximação com as artes plásticas na sua produção", confirma Fernando Vilela, que, além de ilustrador, também é artista plástico e professor: ao lado de Odilon Moraes, outro nome de prestígio no cenário nacional do livro ilustrado, é responsável pelo curso "A imagem narrativa e a ilustração de livros", no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.

Ou seja: misturando técnicas de desenho com pintura e colagem e usando o computador para finalizar as imagens, Fernando produz um trabalho bem próximo da obra de arte. "O livro ilustrado é uma oportunidade de levar para casa uma arte sofisticada que estimula a educação do olhar, algo importante não apenas para a criança, mas também para os pais dela", afirma. Ter ou não texto, nesse tipo de livro, passa a ser um detalhe. 

Fonte: Educar Para Crescer, Texto de Marion Frank

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Trecho da crônica "Os livros da nova era", de Martha Medeiros.



"Eu, por exemplo, gosto do cheiro dos livros. Gosto de interromper a leitura num trecho especialmente bonito e encostá-lo contra o peito, fechado, enquanto penso no que foi lido. Depois reabro e continuo a viagem. Gosto de sublinhar as passagens mais tocantes. Gosto do barulho das páginas sendo folheadas. Gosto das marcas de velhice que o livro vai ganhando: orelhas retorcidas, a lombada descascando, o volume ficando meio ondulado com o manuseio. Tem gente que diz que uma casa sem cortinas é uma casa nua. Eu penso o mesmo de uma casa sem livros."

Fonte: Crônica retirada do livro "Topless", de Martha Medeiros. Ilustração de Paulo Galindro.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A atualidade de Crusoé

O clássico de Daniel Defoe permite uma nova leitura a cada vez. Isso significa modernidade. Não seremos todos Robinson dentro desta sociedade?

Quando li Robinson Crusoé pela primeira vez, ainda criança, em uma edição adaptada da Editora Nacional, muito bem ilustrada (quem era o autor? Por que perdi esse livro maravilha?) tive três momentos de absoluto pânico. O naufrágio, o momento em que Robinson se descobre só numa ilha perdida no oceano imenso e quando, aterrorizado,  descobre as pegadas de Sexta-Feira na areia da praia. Lembro-me que parei de ler e precisei tomar fôlego. Em geral, lia o livro em cima da mangueira do meu quintal. Manga-rosa, uma espécie extinta. A mangueira também não existe mais em Araraquara, na Avenida Djalma Dutra. Ficou no meu imaginário. Encarapitado nos galhos mais altos, onde havia uma forquilha, passava horas. Lia e olhava a cidade. Para trás de minha rua era o campo, o Cerrado do São José, que se tornava o mar. Sentia-me Robinson nas primeiras páginas do livro, sentado no Porto de York olhando os navios que chegavam e partiam. As mamoneiras, praga natural, eram ondas imensas que podiam me atirar em uma ilha deserta. Eu tremia. Leituras foram fundamentais para descobrir minhas emoções.

Li, reli, treli Robinson. Não largava. A primeira grande descoberta foi que a solidão era dolorida, mas não destruidora. Um homem não podia se deixar dominar por ela, a ponto de se derrotar. A luta de Robinson para sobreviver era uma luta pela vida. Cada momento era uma lição. Nadar até o navio, recolher tudo o que seria útil, começar a construir uma casa, rodeá-la por uma cerca para se defender, iniciar uma plantação. Ele plantou milho e construiu um paiol para guardá-lo. Fez mesas e cadeiras. Fez velas de sebo. Lembro-me de que ele tinha mais do que uma cadeira. Para quem seria a outra?  Esperança de um dia chegar alguém? Teceu cestas, fez roupas. Para quê?  Podia andar pelado, na ilha não tinha mais ninguém. Sem querer vi como é o olhar do outro que forma a nossa moral. A cada fim do dia, Robinson, exausto, dormia sem tempo de pensar em seu problema, um irresolúvel problema naquele momento, o estar só. 

Mais tarde compreendi que a lição era: quem destrói é o ócio, o entregar-se a nada, o remoer pensamentos catastróficos, o sentir-se vencido. O homem vive em permanente combate com ele mesmo, ele é, conforme a atitude, seu pior inimigo. O homem só é vencido por ele próprio. Claro que eram coisas intuídas por uma criança. 

Aliás, uma criança que se sentia rejeitada (claro que meu livro de cabeceira era O Patinho Feio; quem não se identificou com ele?). Brincava sozinho, ia para a escola sozinho, tinha poucos amigos (o esquisito era eu, evidente), caminhava pelo campo brincando com meus personagens imaginários. Tornei-me Robinson e as terras ao redor do Largo do São José eram a minha ilha. Construí uma cabana com os galhos das árvores que eram podadas pelos funcionários da prefeitura. Tinha minha lança, meu arco e flecha, minha espingarda, um pedaço de vassoura ao qual meu avô colocou uma coronha. Ele divertia-se mais do que eu. Certa tarde disse a ele que tinha um índio na minha ilha. “E você tem medo dele?” Não sei, ainda não vi, mas índios são maus, não são? “Quem disse?” Está nos livros de escola. Matam, comem as pessoas, atacam os brancos. “Livros da escola? O que escrevem nesses livros, meu Deus!” Exclamou meu avô. Só mais tarde entendi que as lições que tivemos eram sempre sobre índios maus que matavam com tacapes, estourando cabeças, com flechadas, punham fogo nas casas e precisavam ser catequizados pelos jesuítas.

“Primeiro, procure conhecer esses índios. Não tenha medo. Quem sabe, ele também tem medo de você.” Conhecer. Outra lição dada por meu avô e por Robinson que conheceu Sexta-Feira e dele se tornou amigo. Um protegia o outro. Achei muito inteligente a maneira de Robinson marcar o tempo com um X na casca de uma árvore. Dessa maneira conseguiu saber os dias, meses, anos que passou na ilha. Foram 23. Quando voltou, sabia a data com incrível exatidão. Só que me perguntei: para quê? O que interessava o tempo? Ele não tinha compromisso com ninguém, a não ser com ele mesmo? Hoje questiono: o tempo não foi algo que inventamos para nos escravizar? Calendários, relógios, tudo o que existe poderia não existir? Não existindo, como seria nossa vida? Não criamos a contagem do tempo para nos angustiarmos?

A questão da alimentação de Robinson me provocava curiosidade e certo nojo. Preconceitos, claro.  Não entendia que ele pudesse comer carne de cabra. Para mim, as cabras e cabritas eram aqueles animais que, em Araraquara, ficavam soltos pelas ruas, comendo o que viam pela frente. Cabra cheirava mal (talvez por serem malcuidadas, selvagens quase) Carne de cabra? Devia feder. Mal podia a criança antecipar este homem que hoje come cabrito assado e que devora queijos de cabra, alguns de altíssima qualidade.

Anos mais tarde, quando reli Robinson em edições mais completas, e depois quando li uma tradução integral, questionei algumas coisas em torno dessa solidão. Não seria Robinson um misógino que odiava a companhia humana? Sexta-Feira não era um escravo dele, homem branco? E as ideias de moral e religiosidade que existiam dentro dele? Algo quase como um crente, ou um membro da Igreja Universal? A questão é: Robinson tornou-se um clássico da literatura, que permite uma nova leitura a cada vez. Isso significa modernidade. Uma narrativa que provoca eterna discussão. Não seremos nós todos Robinson dentro desta sociedade?

Fonte: Revista Carta Fundamental, Texto de Ignácio de Loyola Brandão