terça-feira, 29 de janeiro de 2013

De pai para filho


Meu pai me ensinou a gostar de livros. Não era um intelectual, um professor: era um simples faroleiro. Funcionário público civil da Marinha, cuidava de manter em funcionamento adequado os faróis, que orientavam os navegantes. Na verdade, havia algo similar à função docente em tal orientação. O faroleiro olha o mar, dia e noite, sem cessar, como vela uma bengala os passos de quem não vê. Mas nada espera, solitário, solidário com tantas naves e vias. Não tem planos de marinheiro; é apenas o faroleiro. Hoje, com a automatização, tal profissão está praticamente extinta. 
Como dispunha de tempo entre os períodos de plantão, sobretudo ao longo do dia, meu pai costumava preenchê-lo com a leitura. A literatura espírita era de seu especial interesse, sobretudo os textos básicos, como A Gênese, de Allan Kardec. Lia sem pressa, degustando cada linha, cada página. Sua afeição pelos livros era contagiante; seu respeito por eles me marcou profundamente. Entre os sete e os dez anos, muitas vezes peguei tais livros e tentei entender o que ele sentia ao lê-los. Achei A Gênese realmente fascinante. É claro que não entendia muita coisa, mas o interesse que tal narrativa despertava era enorme. Contava-se a história da criação do mundo, mas não apenas de modo mágico, como no catecismo católico: parecia mais um livro de ciências. Muito mais tarde, li efetivamente tal livro e minha admiração por ele – e pelo meu pai somente cresceu. A despeito de a ciência nele apresentada ser do século XIX, e estar, hoje, em grande parte, superada, a integridade com que as questões eram abordadas é exemplar em qualquer cenário científico. Afinal, como dizia Bacon, “a verdade nasce do erro mais facilmente do que da confusão”. 
Não foi A Gênese, no entanto, que me atraiu definitivamente para o mundo dos livros e da leitura, mas sim a atitude de meu pai para como os livros, e particularmente o presente que me deu quando ingressei no antigo curso ginasial, em 1960. Comprou à prestação o Novo Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro, editado em Portugal por Lello & Irmão, e passou, orgulhosamente, às minhas mãos. Trata-se de uma obra em três volumes, notável pelo seu caráter efetivamente enciclopédico. A primeira edição é de 1927 – a que mantenho comigo até hoje é de 1960. 
Os dois volumes de A a Z têm mais de 100.000 verbetes, mais de 6000 gravuras, centenas de quadros e mapas, coloridos e em preto e branco, dezenas de reproduções e desenhos à pena. O texto é convidativo e já se preocupa, nessa época, com a integração entre os países de língua portuguesa, fazendo referência a um Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro, então vigente. Apresenta ainda, no final do segundo volume, uma coletânea de frases latinas e em outras línguas, com significado e ilustração de uso. 
O terceiro volume era meu predileto: compunha-se apenas de História e Geografia, apresentadas em ordem alfabética de nomes, lugares, fatos importantes. Ao longo de minha vida escolar, mesmo dispondo de bancos de dados mais generosos, nunca deixei de consultar meu primeiro oráculo, a obra dos Lellos. Quando vim de Recife para São Paulo, em 1964, para fazer o chamado Curso Científico, trouxe em minha mala os três volumes, que simbolizavam o conhecimento que meu pai tanto valorizava, mesmo que as oportunidades de estudo formal não lhes tenham sido oferecidas.
Um efeito colateral importante do presente de meu pai foi meu especial interesse por dicionários de todos os tipos. Além dos dicionários em sentido estrito, os técnicos ou de disciplinas específicas, como de filosofia, antropologia, sociologia, linguística  matemática etc. Também os analógicos, os de sinônimos e antônimos, os de rimas, de regência, de línguas estrangeiras, de tupi-guarani, e particularmente os que possibilitam triangulações curiosas, como inglês-francês, espanhol-alemão, italiano-japonês etc. 
Leciono na universidade desde 1972 e já escrevi diversos livros, frutos de meu trabalho acadêmico. Hoje, percebo, na temática da maior parte deles, uma preocupação permanente – nem sempre bem sucedida - com os fundamentos do que se discute, com a construção de uma narrativa abrangente e reveladora da gênese das ideias apresentadas. A partir de 1995, passei a escrever também livros para crianças a partir de 5 anos. O primeiro deles foi justamente um dicionário de bichos, que chamei de Bichionário. Nele os animais são apresentados em ordem alfabética, um para cada letra, por meio de um pequeno poema referente a uma característica marcante dos mesmos. Ao final da leitura, o efeito colateral mais interessante, a meu ver, é o fato de as crianças introjetarem a ordem alfabética e passarem a recorrer naturalmente a ela na organização do mundo circundante. E novos livros são criados por elas: Brinquedionário, Plantionário, Timeonário, Frutionário etc.
Certamente, meu interesse pela epistemologia e por dicionários não podem ser associados explicitamente às leituras de meu pai, ou ao presente que me ofereceu aos 11 anos. Mas não tenho dúvidas da influência tácita de tais fatos sobre minha formação. Hoje, 50 anos depois, rendo-lhe as devidas homenagens.

Fonte: Revista Carta Fundamental, n. 18, Texto de Nílson José Machado, Ilustração de Kelly Kennedy

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