sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Um poeta cheio de caprichos

Só alguém que amou tanto a poesia como meu pai, Paulo Leminski, pode influenciar tanta gente até hoje.

A paixão pela linguagem, e a forma que embasava tudo que fazia são fruto de pelo menos duas paixões de meu pai: línguas e história. Pela primeira, ele entremeou universos linguísticos, pesquisando e encontrando similaridades entre as palavras que algumas gramáticas e muitas fronteiras teimavam um dia em se separar. A segunda causou um efeito de conexão entre a atualidade e a tradição. E atualidade eu digo do agora, pois, mesmo após mais de 20 anos de sua morte, sua obra é atual e ainda desperta muitos novos escritores. Isso eu sei bem, porque, quando estava no colégio, a poesia que meus pais faziam (e a dos poetas que estavam na estante deles) me interessava muito mais que a dos livros obrigatórios. Por sorte, de todos nós, muita coisa mudou de lá pra cá.

Ele reuniu seus primeiros escritos em um livro intitulado Caprichos & Relaxos e é justamente dele que vou destacar alguns poemas:

lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça

Já no título do livro ele declara o equilíbrio de sua obra entre o esmero tenso, a pesquisa intensa e o prazer de usufruir uma poesia sem pretensão. Ele representava muito essa relação entre os opostos, esses complementos contraditórios (ou não) que formam a personalidade de cada um. Seus poemas, e os rótulos que dão ao seu trabalho, sempre têm esses polos, do pop ao cult, caprichos e relaxos, a pressa e a preguiça. Mais uma vez múltiplo.

Vivem me perguntando o porquê da atualidade de seus versos. Como ele mesmo dizia: “Tem que ter por quê?” O que eu sei é que eles combinam com os nossos tempos: são diretos, concisos, contundentes, precisos, sintéticos, rápidos, muito inspirados, além do óbvio. Sobretudo, ele queria a poesia muito além do papel e em todos os suportes, outdoor, camisetas, arte de rua (através do grafite), no sarau. O máximo dito com o mínimo:

você para
a fim de ver
o que te espera

só uma nuvem
te separa

das estrelas

não discuto
com o destino

o que pintar
eu assino

Muitas vezes seus poemas são reflexos do seu tempo, com referências a acontecimentos, autores e problemas sociais. O seguinte surgiu a partir de uma notícia de jornal que chamou a atenção da minha mãe, Alice Ruiz. Virou canção (letra e música) gravada pelo Caetano Veloso em 1981.

De repente
me lembro do verde
da cor verde
a mais verde que existe
a cor mais alegre
a cor mais triste
o verde que vestes
o verde que vestiste
o dia em que te vi
o dia em que me viste

de repente
vendi meus filhos
a uma família americana
eles têm carro
eles têm grana 
eles têm casa
a grama é bacana
só assim eles podem voltar
e pegar um sol em copacabana.

Ele era muito humorado, o que transparece em sua música e também na poesia, satirizando inclusive a sua condição de poeta:

eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito

eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões

em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois

Voltando às perguntas que me fazem: E como alguém pode despertar tanta paixão pela poesia como ele?

parem
eu confesso
sou poeta

cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face

parem 
eu confesso
sou poeta

só meu amor é meus deus

eu sou o seu profeta

Viram só? Só alguém que amou tanto a poesia para poder influenciar tanto a gente. Essa é fácil.

Fonte: Revista Carta Fundamental, n. 48, maio 2013, Texto de Estrela Ruiz

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