Foi inesperado. Meu pai nunca me levava às obras onde trabalhava, exceto na festa da cumeeira. Talvez temesse que eu pudesse acabar gostando de pá, areia e cimento e, como ele, quisesse ser pedreiro. Não que desprezasse a profissão. Ao contrário, mesmo recatado, guardava orgulho do artesão fino que era. Repetidas vezes mencionou a admiração do Warchavchik, o grande arquiteto modernista, por seu trabalho.
Contudo, o talento em suas artes, por mais precioso que fosse, significava dinheiro curto, suado e trabalho de sol a sol. Sonhava certamente com dias melhores para os filhos.
Sei lá por que razão, certa manhã resolveu me levar à casa que estava reformando, próxima da nossa. Finalmente, eu, filho do mestre André, ia poder descobrir os encantos de um canteiro de obras em pleno funcionamento.
O sobrado era bonito e grande. Por conta da reforma, a sala de visitas estava vazia. Só lá no fundo havia um volume, coberto por um lençol empoeirado. Tão logo chegamos, meu pai me deixou por lá:
– Procure o que fazer!
Procurei imediatamente. Quis saber, claro, o que se escondia sob o tal lençol empoeirado. Assim que o afastei um pouco, vislumbrei um belo móvel de madeira escura pintada. Nunca tinha visto uma peça como aquela, e só chegando em casa fiquei sabendo pela minha mãe do que se tratava:
– É uma estante de livros. O tampo de vidro evita poeira!
Mais importante, no entanto, não foi o nome, mas a descoberta dos objetos ali guardados. Eram uns livrões, grandes como eu jamais vira, com capas esverdeadas e desenhos engraçados. Nada a ver com as cartilhas e os livrinhos escolares onde eu estudava Linguagem, Ciências, Geografia e até Educação Moral e Cívica! Qualquer criança curiosa os desejaria.
Como não houvesse ninguém na sala, puxei o lençol e descobri toda a estante. Lembro que reluziu sob o esplêndido sol que entrava pelos dois janelões da sala. Peguei rapidamente um dos livrões e abri-o. Na mesma hora, uma criatura pouco amigável apareceu diante de mim:
– Quem deu ordem para você pegar o que não é seu?
Quase morri de susto. Tinha certeza de que não havia ninguém ali. De onde, de repente, me apareceu aquela criaturazinha! Mas reagi:
– Quem disse que eu estava pegando o que não é meu?
– Vai ver estava até roubando o livro!
Bem, aí foi demais. Onde já se viu insinuação de que eu seria um ladrão. O sangue começou a ferver, as bochechas esquentaram, a língua destravou:
– Vê lá como fala comigo, menina! Quem é você? De onde apareceu?
– Vim com meu pai, seu cara de pavio. Ele constrói casas onde as crianças podem morar. Como essa que você pegou. Eu moro aí.
– Mora onde?– perguntei espantado
– Nesses livrões verdes…
– Acha que sou tonto, garota?
– Quem está falando que é tonto é você. Já ouviu falar de literatura?
– De quê?
Ela soletrou:
– L-i-t-e-r-a-t-u-r-a!
Como eu não respondesse, continuou:
– Pois fique sabendo que existem outros planetas e que não são exatamente como este em que você vive. Um deles é o planeta literatura.
– Que você não parece deste planeta, não parece mesmo. Com essas roupas, essa cara de boneca…
– Sou de um Sítio que não troco por nada.
– Então por que está aqui?
– Você me chamou, abriu as portas da minha casa.
– Eu?
– É, você. E quando abrem as portas da minha casa, vou logo saindo. O Sítio do meu pai tem esse probleminha, Tenho de esperar gente como você aparecer para poder sair e andar por outros mundos. Logo eu que não suporto dependências!
– Mas você é uma criança !
– Comigo, não. Sou criança, mas detesto dependência e ficar presa nesse monte de papel e tinta. Quer saber, se pudesse fugia…
A conversa, que até então só tinha me causado espanto e certa irritação, foi tomando novos rumos. A garota-cara-de-boneca não era nada boba, viesse de onde viesse. Impossível não prestar atenção ao que dizia.
Quis saber o seu nome.
– Advinha.
– Como?
– Não vê televisão? Estou sempre por lá, levada pelo seu Júlio Gouveia e dona Tatiana
Belinky. Grandes sujeitos!
– Na minha casa não tem televisão. Como posso saber seu nome?
– Na sua escola não tem livros?
– Tem cartilha, dicionário. Esses livrões, a tal literatura, não tem, não.
– Pelo que vejo, apesar de poder abrir sozinho as portas de sua casa, você vive mais trancado do que eu.
– Deixe de comparação e me diz o seu nome!
– Tá bem. Eu me chamo Emília.
Assim que ela acabou de me dizer o nome, não sei por que, tive enorme vontade de escrevê-lo bem grande, na parede branca da sala. Peguei com avidez um pedaço de tijolo que estava por ali e caprichei na letra. Emília ficou encantada. Provavelmente, jamais tivesse visto alguém escrever com tijolos. Eu já, meu pai era pedreiro.
Apesar do arrebatamento, Emília não perdeu tempo.
– Detesto ficar nesta estante empoeirada. Me leve pra sua casa. É só pedir pro dono do livrão, ele empresta.
Pedi. E assim, ainda impúbere e imberbe, levei mulher para casa pela primeira vez. Como não houvesse estantes por lá, tive de acomodar a Emília na mesinha de cabeceira. Claro, acabamos íntimos, vivendo uma grande e arrebatadora paixão, alimentada pelos novos livrões com as histórias do Sítio que eu ia pegar emprestado na casa em reforma.
Mas a história da paixão não acabou aí. Como repartíamos o mesmo quarto, meu irmão acabou se interessando pela moça, também. Formamos, imaginem, um menage à trois. Claro, a situação foi bastante delicada, exigiu prolongadas considerações, mas o que fazer? Emília nos dizia que no mundo da literatura as coisas eram diferentes, que deixássemos de lado tolas convenções e fôssemos felizes. E fomos!
Confusão maior estava por vir. Meu irmão falou da Emília a amigos. Nunca tanta gente apareceu em casa! Todos querendo aproximar-se de nossa musa. E ela repartia-se, seduzia e deixava-se seduzir com naturalidade e pureza. E mais: por meninos e meninas! Sem distinções. Essa Emília era mesmo independência ou morte. De direito e de fato, filha do seu Lobato! Com ela, fui capturado para o mundo da imaginação, das emoções e dos desejos libertos, indispensáveis à purificação.
Fonte: Revista Carta Fundamental, Texto de Edmir Perrotti
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