quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Se eu fosse você

Ler ficção derruba a barreira entre indivíduos fechados em si mesmos e mostra igualdade sob a diversidade. Assim, obriga a aceitar o outro.

A gente está sempre aprendendo com os outros. Eu achava que tinha lido com bastante atenção o livro Retratos da Leitura no Brasil 3, organizado por Zoara Failla para o Instituto Pró-Livro, com o resultado da pesquisa que eles organizam pela terceira vez. Mas são tantas informações, que algumas acabam passando despercebidas. Foi preciso ler um artigo no Jornal da ABI para me dar conta de um dado estarrecedor que a pesquisa revela: só 2% dos professores leem no seu tempo de lazer. E, mesmo assim, nem sempre literatura.
 
Então, hoje me dirijo aos outros 98% que não desconfiam do que estão perdendo – a gostosura que pode ser um livro de literatura. Algo que, embora tenha 1.001 utilidades, vai muito além do simples ato utilitário e se define pela outra delícia.
 
Para começo de conversa, vamos acertar algumas coisas. Não é preciso se sentir cobrado. Ninguém precisa se sentir cobrado. Ninguém tem culpa de não ter desenvolvido intimidade com os livros ou descoberto a leitura. O Brasil, como um todo, só está despertando para isso agora. Então, não se sinta culpado por não ter experimentado ainda, seja por insegurança, seja por falta de oportunidade ou de exemplo. Sempre é hora de começar. Mas não fique achando que não gosta de ler. Pessoalmente, acho que isso não existe. O que existe é quem ainda não descobriu que pode gostar.
 
Costumo dizer que ler é como namorar: quem acha que não gosta é porque ainda não descobriu o parceiro que dá prazer. Desista daquele que não satisfaz e saia em busca de outro, até encontrar. Então, procure até achar o tipo de livro de que gosta, o autor com quem tem mais afinidade, a história que lhe atrai, o poema que o toca de modo especial. Entre numa livraria, folheie alguns, leia as orelhas e quartas capas, permita-se sentir o chamado de algum livro. E não caia no autoengano de dizer que não lê porque livro é caro. Já experimentou ir a uma biblioteca explorar um pouco? Hoje a maioria dos municípios brasileiros tem bibliotecas, muitas escolas também. Lá, livro é de graça. Você leva para casa e lê à vontade.
 
E ler literatura é incomparável. Uma oportunidade de vivenciar algo único: a alteridade. Quer dizer, ser outro, continuando a ser o mesmo.

Deixemos a poesia para outra conversa. Hoje vou falar um pouco sobre a leitura de prosa. Dependendo do fôlego de cada um, ou da vontade naquele dia, pode ser um encontro com diferentes gêneros: romance, conto, crônica. E em cada em deles, podemos ter ofertas infinitas, num cardápio inesgotável. Romances de amor, de aventuras policiais, psicológicos, de costumes, experimentais. Crônicas, realistas, cômicas, líricas. Não importa. Todos nos permitem ser alguém diferente enquanto estamos lendo. Os muito bons nos transformam por dentro, ficam conosco depois e trazem essa experiência para nosso íntimo para sempre. Mas todos nos propiciam essa chance de entrar na pele de um personagem, conhecer suas circunstâncias tão diversas das nossas, tentar entender o meio em que se move, as emoções que sente, as ideias que lhe povoam a mente. Em suma, viver outra vida. Essa é uma experiência libertadora que, embora também oferecida por filmes e novelas, nunca é tão plena como num livro, em que os detalhes concretos variam com a imaginação de cada leitor, o todo-poderoso cúmplice do autor na criação.
 
Recentemente fez muito sucesso um filme brasileiro chamado Se eu fosse você, que teve até uma continuação com o mesmo nome. Muito divertido, explora a ideia de outro, baseado num livro chamado Que Sexta-Feira mais Pirada! (editado pela Ática em 2003). Em ambos, os personagens trocam de papéis, fica a identidade de um no corpo do outro. No primeiro caso, o marido no corpo da mulher e vice-versa. No segundo, a troca se dá entre mãe e filha. No final, cada um adquiriu uma compreensão incrível e riquíssima sobre a vida do outro.

A leitura de uma obra de ficção faz exatamente isso, ainda que não de forma literal como nesses filmes. Derruba as barreiras que se erguem entre indivíduos fechados em si mesmos, faz compreender as diferenças que existem debaixo das semelhanças entre as pessoas e mostra a igualdade sob a diversidade. Mais que isso: desestabiliza a ilusão de centralidade de cada um, já que no fundo todo indivíduo tende a se ver meio como o centro do mundo. A ficção obriga a aceitar o outro. Corrói o autoengano de que a identidade do leitor é a única possível. Afasta a tentação do autocentramento das referências pessoais. É uma experiência imaginária que reorganiza o mundo e a consciência do leitor.
 
Nunca entendi férias sem a companhia de alguns livros bem escolhidos. Para ler no avião, no ônibus, na praia, no banco do parque, na rede, na cama, no aeroporto. Onde a vida me levar nessa hora. De qualquer modo, não estarei apenas ali. Mas também aonde o livro me levar, viajando pela linguagem, mergulhando em mim mesma, descobrindo os outros. As possibilidades são infinitas. Não perco por nada.
 
Se eu fosse você, experimentava.

Fonte: Revista Carta Fundamental, n. 44, dez/2012-jan/2013, p. 12-13, Texto de Ana Maria Machado.

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