terça-feira, 16 de outubro de 2012

Dom Quixote: meu primeiro amor livresco

Encontramo-nos (eu a Ele e Ele a mim) por acaso, quando eu, aos 11 anos de idade, vi, na biblioteca do pai de uma amiguinha, um volume encadernado de vermelho e com escritos em letras douradas: Aventuras de Dom Quixote de La Mancha. “Quem seria esse Dom Quixote de La Mancha?”, devo ter me perguntado, pois nessa época eu mal tinha ouvido falar em Espanha. Folheando o volume, li que era uma tradução portuguesa e que fora escrito por um espanhol, Miguel de Cervantes, em 1615. Para mim, naquele tempo os chamados “autores” das histórias não pertenciam ao mundo em que eu vivia, mas a algum lugar mágico qualquer. Era como se não existissem como seres reais. O próprio Monteiro Lobato, cujas Reinações de Narizinho tanto me divertiam, só mais tarde descobri que não só era real, mas que também fora um grande brasileiro.

Eu era uma “leitora voraz”, coisa comum na minha geração: nasci em 1922, ano da Semana de Arte Moderna. E, naquele meu primeiro encontro com Dom Quixote, a imediata atração que senti pelo livro com letras douradas, teria sido influência da atmosfera meio mágica da sala com reposteiro de veludo verde, estante de madeira escura e belos livros enfileirados, um ar de igreja… algo sagrado. Biblioteca era coisa raríssima de existir em casa de família mas, nesta, morava um juiz de direito.

Lembro que, ao folhear o volume, meu primeiro impulso foi pedi-lo emprestado, algo dificílimo, mas que acabei conseguindo. Levei-o para casa, comecei a ler e logo me vi arrastada pelas absurdas/divertidas “loucuras” de Dom Quixote de La Mancha, fidalgo pobre, idealista e ingênuo, fervoroso leitor das antigas novelas de cavalaria. Tão fiel admirador dos valores nelas defendidos, que um dia resolve tornar-se, ele mesmo, um heroico “cavaleiro andante” que, tal como os das novelas, dedicaria a vida a defender os fracos, salvar donzelas indefesas, enfrentar monstros e feiticeiros. Enfim, tornar-se um herói em defesa do bem, da beleza e da nobreza de caráter.

Neste momento, minhas leituras ainda desconheciam as novelas de cavalaria e a grandeza dos cavaleiros andantes, que viveram na Idade Média (séculos XII-XV). Mas esse desconhecimento não impediu que, desde as primeiras páginas, se tornasse evidente o problema central da trama narrativa: o patético/cômico sonho de Dom Quixote, em se tornar um “cavaleiro andante”, e sua total impossibilidade de realização, pois em sua época (século XVII) já não havia lugar para os idealismos heroicos que fizeram a glória daqueles. Foi desse “desencontro” entre o ideal e o real, narrado de maneira cômica (e não trágica), que me levou a seguir interessada, da primeira à última página, os risíveis esforços de Dom Quixote para sair pelo mundo a enfrentar dragões e, vencedor, conquistar a glória.

Seguindo as “regras da cavalaria”, Dom Quixote começa por “armar-se cavaleiro”, vestindo uma velha e enferrujada armadura, que fora de seus bisavós e ficara esquecida num canto do porão. Como “montadura” que o levaria em suas aventuras, pôs arreios em seu magro e velho cavalo, dando-lhe o “sonoro e imponente” nome de Rocinante. E, como todo cavaleiro andante tinha uma formosa dama, a quem dedicar suas vitórias, Dom Quixote elegeu para si, como “grande dama”, uma robusta lavradora vizinha, a quem deu o nome de Dulcineia Del Toboso. Como escudeiro, toma a seu serviço um camponês bronco, mas muito leal: Sancho Pança. E assim Dom Quixote sai pelos caminhos em busca de aventuras. A leitura das mil desventuras que se sucedem me divertiram imensamente por resultarem da visão alienada do patético Quixote, que via o “mundo às avessas”.

Na escola, eu lia passagens pitorescas para minhas colegas e ríamos muito. Lembro, porém, que em certos momentos eu oscilava entre o riso e a pena, diante dos tristes fracassos do pobre fidalgo, embora todos eles provocados por sua alienação. Enfim, lido e relido o livro, devolvi-o ao dono, mas nunca mais Dom Quixote de La Mancha saiu do meu imaginário. Ficou-me dele uma sensação de descompasso inevitável entre o ideal e o real. Descompasso que se revelou claramente quando, já adulta, voltei a ler e analisar essa obra-prima cervantina.

Sem dúvida foi nesse descompasso entre o sonho de Dom Quixote e a dura realidade de seu tempo que Cervantes se apoiou para satirizar os desmandos da Espanha imperial e injusta, em que ele próprio vivia. Mas sua genialidade de escritor ultrapassou esse objetivo imediato e a novela, que ele teria escrito como sátira à Espanha barroca de sua época, transformou-se em algo universal. As Aventuras de Dom Quixote de La Mancha eternizou-se no tempo como uma das grandes alegorias da condição humana: a visão do ser humano sempre no encalço de seu “objeto desejado” e sempre impedido de conquistá-lo plenamente.

Talvez a lição que Cervantes nos dá com seu idealista/patético Quixote é que a vida vale pela luta de cada um para a realização de um sonho. O resultado, positivo ou negativo, é algo secundário.

Essa visão de vida é o que me vem à mente, quando olho para a coleção de “Quixotes” que hoje se espalha pelo meu apartamento. Visão de vida que começou com um livro que, anos mais tarde, em minhas pesquisas literárias, descobri por acaso tratar se de uma edição portuguesa pertencente à Biblioteca Ideal, destinada aos jovens: Miguel de Cervantes. Aventuras de Dom Quixote de La Mancha (Ilust. Gustave Doré. Introd. Alberto Pimentel, Lisboa, Casa Garret, 1921). Volume que teria chegado ao Brasil, no final dos anos 1920 e eu o descobrira em 1933, para nunca mais esquecê-lo.

Fonte: Revista Carta Fundamental, Texto de Nelly Novaes Coelho

Nenhum comentário:

Postar um comentário