Se o primeiro livro tivesse falhado comigo, na certa eu teria me arriscado de novo. Mas até onde vai a paciência de uma criança?
O primeiro livro que mexeu comigo foi o primeiro que li, Robinson Crusoé, do Daniel Defoe. Acabei a leitura bobo de emoção, tanto que eu soube que precisava escrever uma aventura como aquela. Depois de uns dias sonhando, peguei um caderno e uma caneta, disposto a escrever um longo romance. Embatuquei na terceira linha, mas o estrago já estava feito: meu destino era escrever.
Minha reação foi muito parecida com a de Dom Quixote. O velho fidalgo, depois de encher a cabeça de ficção, limpou a armadura dos antepassados, consertou o elmo com papelões, pegou a lança e a espada, montou Rocinante e saiu pelo mundo à espera de que o dito-cujo fosse menos chato, complicado e indiferente. Eu, aos 11 anos, incluí a literatura entre as minhas armas, como um mundo paralelo onde eu podia ensaiar todas as possibilidades.
Foi Robinson Crusoé, mas podia ter sido Os Três Mosqueteiros ou A Ilha do Tesouro, que ainda hoje releio com prazer, ou O Último dos Moicanos, O Máscara de Ferro ou Os Irmãos Corsos, livros que perdi de vista mesmo os tendo amado. E se o primeiro livro que li fosse muito ruim, ou se eu o tivesse achado muito ruim? Sempre me lembro do que disse o filósofo espanhol Fernando Savater: "Sem dúvida, acho que o que faz você entrar no mundo da leitura é a paixão por um livro, não tem outro jeito. Você explica teoricamente para alguém que ler é maravilhoso, que vai descobrir não se sabe que coisas, e se ele não o experimenta, não há nada o que fazer. Em troca, quando alguém leu um livro com paixão, com emoção, quando sentiu a paixão de um autor, você já não precisa explicar mais nada. Por isso acho que o hábito da leitura se contagia. Em vez de transformá-lo numa lição, é preciso transformá-lo num contagio".
Se o primeiro livro tivesse falhado comigo, na certa eu teria me arriscado de novo. Mas cabe, umas perguntinhas. Até onde vai a paciência de uma criança? Se as opções de escolha dela são poucas? Se ela é de uma família que não lê? Se a escola pensa apenas no vestibular e despeja os tais livros obrigatórios, bombas como A Moreninha ou outras indignidades?
Fonte: Revista Carta Fundamental n. 26 (março de 2011), Texto de Ernani Ssó.
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